Literatura e Movimentos Literários na África Negra
Literatura da África negra
Originalmente uma arte dos colonizadores, de sua linguagem e de seus padrões culturais, a literatura da África negra (em francês, inglês, português e algumas línguas autóctones) vem amadurecendo na medida em que assume a negritude e expressa mitos, valores e significados peculiares à africanidade.
Ambientação. Para se falar em literatura africana, é necessário rever o panorama do continente nas condições muito especiais de seu meio físico e humano, de sua extrema peculiaridade e diversidade cultural, que de início nada ou muito pouco tinham a ver com as civilizações brancas, suas concepções, valores, sua própria noção de arte, literatura e atividades correlatas.
Na imensidão da África, em seus 30.000.000 km² dispostos maciçamente e de intenso calor na maior parte do território, com a fauna mais rica da Terra, vivem cerca de milhões de seres humanos reunidos em centenas de povos ou sociedades tribais. Isso não é apenas a realidade do passado; é ainda, no essencial, a do presente. Não se pode esquecer que a divisão política entre fronteiras nacionais foi um artifício imposto pela colonização européia, que se manteve mais ou menos determinado por seus princípios e expectativas.
Desses milhões de habitantes, descontados os brancos do norte (árabes, berberes etc.), os da África do Sul e outros descendentes de europeus, e excetuando-se ainda uma minoria negra assimilada às civilizações européias nos principais centros urbanos, a maioria esmagadora jamais poderia dedicar-se à literatura pelo simples fato de não conhecer a escrita.
Observe-se, porém, que é também europeu e de outro universo humano o critério que, em estatísticas sobre a África, arrola essa maioria como "analfabeta". Toda essa gente é originária de sociedades ágrafas (cujas línguas não têm escrita) e que por isso, em condições normais, só se comunica oralmente. Se tratasse de produzir uma arte feita de palavras, seria naturalmente levada a produzi-la em termos de pura oralidade. Foi o que, durante séculos e séculos, aconteceu: havia uma espécie de poesia falada - mais propriamente, cantada - , fábulas, lendas, ditos educativos.
Como em outros casos semelhantes, essa comunicação tinha pouca, ou nula, intenção estética. Era, e é, utilitária: visa à coesão e educação do grupo, da tribo, por seus componentes culturais específicos, suas necessidades internas. O aparecimento de uma literatura negra em francês, inglês e português a partir de meados do século XIX, mas que só começa a se configurar propriamente no século XX (e só adquire fisionomia própria em sua terceira ou quarta década) não poderia deixar de estar associada à situação do colonialismo e a uma espécie de levante intelectual contra este. Nessa rebelião, a princípio, o colonizado devolve ao colonizador, em sua própria língua, uma imagem da África recuperada por seus filhos e, portanto, oposta à difundida ou até admirada, em seus aspectos pitorescos, pela Europa moderna.
O movimento da negritude (1935), liderado, entre outros, pelo poeta senegalês Léopold Sédar Senghor, sistematizou e acentuou essa tendência, chegando, em alguns momentos, a institucionalizá-la. Por tudo isso, quem se dispõe a examinar a literatura da África negra de um ponto de vista ocidental deve ter o cuidado de distinguir e valorizar corretamente o que melhor se amolde não às noções estéticas e literárias européias, mas à identidade das culturas africanas, ou seja, ao que destas efetivamente foi recriado em línguas originalmente estrangeiras.
Em língua francesa. Entre as obras que se podem considerar pioneiras na literatura africana de expressão francesa estão Boulou, chacal de Mayombé (1924), de René Trautmann; o romance Force bonté (1926; Força bondade), do senegalês Bakary Diallo; Bêtes qu'on apelle sauvages (1929; Animais chamados de selvagens) de André Demaisaon; Poèmes et chansons (1930; Poemas e canções), da congolesa Nelle Marian, e outro romance senegalês, Karim, de Ousemane Socé Diop. É em 1935 que o movimento da negritude dá seus passos mais importantes, com a participação decisiva de Léopold Senghor e o apoio, na Europa, de Camus, Sartre, Gide, Balandier e muitos outros. De cunho pan-africanista, a tendência salientou a necessidade de procurar e exprimir as raízes africanas.
Senghor, que se formou na Sorbonne e fez tanto ou mais política quanto poesia, chegando (1960) à presidência do Senegal, teve influência de Baudelaire, Saint-John Perse, Claudel, e escreveu Chants d'ombre (1945; Cantos de sombra), Hosties noires (1948; Hóstias negras), Chants pour Naëtt (1949; Cantos para Naëtt), Ethiopiques (1956), Nocturnes (1961). Na prosa, alguns de seus conterrâneos e contemporâneos notabilizaram-se no conflito cultural de seus temas e motivos, como Birago Diop, de alta densidade folclórica em Leurres et lueurs (1960; Negaças e luares) e Les Contes d'Amadou Koumba (1947) e Sembene Ousmane, de O pays, mon beau peuble (1957; Ó país, meu belo povo). O poeta David Diop, autor de Coup de pilon (Pancada de pilão), é daqueles que, na observação de Sartre, estão exilados em sua própria terra, pelo que nela fazem os brancos.
Ficcionistas de humor sarcástico em relação aos europeus e capazes de críticas veementes à situação colonial são os camaronenses Mongo Beti, autor de Le Pauvre Christ de Bomba (1956; O pobre Cristo de Bomba) e Ferdinand Oyono, autor de Une Vie de boy (1956; Uma vida de boy) e Le Vieux Nègre et la médaille (1956; O velho negro e a medalha). Na poesia camaronesa também vários nomes se destacaram, como Francis Bebey, Patrice Kayo, Jean Paul Nyunai.
O poeta martinicano Aimé Césaire, com Léopold Senghor um dos cabeças da negritude, exerceu forte influência sobre poetas congoleses e zairenses como Felix Tchikaya U'Tam'Si, autor de Le Mauvais sang (1955; O sangue ruim), Feu de brousse (1957; Fogo de mato), À triche-coeur (1960; De má fé), Épitome (1962), e Antoine-Roger Bolamba, que escreveu Esanzo (1956). Na ficção, Sylvain Bemba chegou ao primeiro plano com La Chambre noire (O quarto escuro), premiado pela revista Preuves (Provas) junto com L'Arbre fétiche (A árvore fetiche), do daomeano Jean Pliya.
Alguns autores mostram, em seus livros, uma espécie de aculturação africana de filosofias européias, caso de Olympe Bhêely-Quenun, daomense, kafkiano e camusiano em Un Piège sans fin (1960; Uma armadilha sem fim). Outro daomense significativo é o poeta Paulin Joachin, de Un nègre raconte (Um negro conta). Os temas da infância e adolescência já deram obras tocantes, como L'Enfant noir (1953; A criança negra), do guineano Camara Laye, de intenso conteúdo místico africano, e o romancista Aké Loba, da Costa do Marfim.
No Mali, o escritor Yambo Ouologuem, Prêmio Renaudot em 1969, parece representar uma nova mudança qualitativa com Le Devoir de violence (1969; O dever de violência), algo como um réquiem e denúncia pungente da violência contra o negro. Ouologuem também é poeta engajado, de agressiva mordacidade para com os preconceitos e pressupostos do colonizador.
Em língua inglesa. De modo geral, na literatura africana de expressão inglesa nota-se um grau menor de europeização e maior, por isso mesmo, de recuperação dos ingredientes culturais africanos. É como se a relação colonialista, nesse caso, tivesse favorecido menos o sincretismo, isto é, a fusão dos antagonismos, ou favorecido mais a manifestação e desenvolvimento da africanidade. Os resultados, em alguns casos, são admiráveis.
Um dos iniciadores foi o sul-africano S. T. Plaatje, romancista de Mhudi (1930), seguido bem mais tarde pelo ganense M. Dei-Anang, autor de Wayward Lines from Africa (1946; Caminhos sinuosos da África), apontado como o primeiro poema africano em língua inglesa. Em seguida, não apenas os nomes mais representativos aparecem na Nigéria, como iniciam um processo, fecundo e ainda em curso, pelo qual o país reúne os melhores títulos da literatura africana em inglês.
Um dos casos mais fascinantes, e dos maiores ficcionistas africanos, é Amos Tutuola, nascido em 1920. Com uma obra toda de caráter folclórico e mitológico, ele escreve basicamente em pidgin-English (inglês rudimentar e misturado com elementos de linguagem nativa). Quando publicou The Palm-wine Drinkard and his Dead Palm-wine Tapster in the Dead's Town (1954; O bebedor de vinho de palmeira e seu morto taberneiro de vinho de palmeira na cidade dos mortos), chamou a atenção até de Dylan Thomas pela pureza primitiva de suas imagens e símbolos. Já foi visto como uma espécie de Cervantes da prosa de ficção africana.
Também grandes escritores nigerianos, a seu modo mitológicos e autênticos, são Chinua Achebe, autor de Things Fall Apart (1956; As coisas se desagregam), em torno do desequilíbrio causado pelo branco; Gabriel Okara, autor de The Voice (1964; A voz); e Onuora Nzekwu. Cyprian Ekwensi, outro ficcionista, é mais europeizado. A poesia nigeriana é soberbamente representada por John Pepper Clark, Christopher Okigbo e Wole Soyinka, que é também um dramaturgo engajado; ganhador do Nobel de literatura (1986), é autor das peças The Lion and the Jewel (O leão e a jóia) e The Road (A Estrada).
Há ainda autores de valor no Quênia, como James Ngugi e Grace Ogot; em Serra Leoa, como o dramaturgo e contista Sarif Easmon, de Dear Parent and the Ogre (Papai querido e o papão); e em outros países de colonização inglesa.
Em língua portuguesa. Sob a colonização portuguesa, as manifestações literárias começaram mais cedo que nas outras línguas, algumas (cartas de príncipes negros a reis de Portugal) remontando ao século XVI, outras surgindo no século XIX, como Deus, pátria e amor (1850), de José da Silva Maia Ferreira, e Cenas d'África (1892), de Pedro Félix Machado, ambos angolanos.
Já se podem tomar por propriamente africanos os contos negros de Nuvens que passam (1927), do angolano Oscar Bento Ribas, e as Mornas, cantigas crioulas (1930) do cabo-verdiano Eugênio Tavares. Por volta de 1930 os escritores das então províncias ultramarinas passam a refletir as influências do movimento da negritude e a sofrer, pouco depois, violenta repressão da metrópole, que caía sob o salazarismo. A primeira tomada de consciência ante esse desafio é o movimento Claridade (1936) em Cabo Verde, com o lema "fincar os pés na terra" e sentido principalmente social.
Enquanto jornais e revistas de resistência eram fechados, diversos autores tentavam expressar sua realidade africana. Entre eles contam-se os angolanos Antônio de Assis Júnior, Viriato da Cruz, Mário Antônio, Luandino Vieira, Mário Pinto de Andrade -- que organizou a Antologia da poesia negra de expressão portuguesa, Tomás Vieira da Cruz e sobretudo Fernando Monteiro de Castro Soromenho, autor de Nhári (1938), Rajada (1943), Terra morta (1949) e outras obras. Apesar de ter estudado em Portugal, Soromenho, que morreu no Brasil em 1968, "viu a África (na medida em que isso é possível) não com seus olhos de branco, mas com os olhos dos negros", segundo Roger Bastide.
Em Cabo Verde, a posição dos autores de literatura da África negra em português é complicada pelas peculiaridades do arquipélago, especialmente seu caráter bilíngue, com a adição do crioulo, que também passou para a prática literária, de maneira às vezes alternativa, às vezes concomitante. Entre outros autores, sobressaem: o pioneiro Jorge Barbosa, de Arquipélago (1935), o poeta e novelista Baltasar Lopes, de Chiquinho (1947), Manuel Lopes, autor de Paul (1932), Chuva braba (1956), O galo cantou na baía (1958), Crioulo e outros poemas (1964), o poeta Antônio Nunes, o escritor bilíngue Onésimo Silveira de Toda gente fala: sim senhor (1962), Gabriel Mariano, que em 1958 liderou o Suplemento Cultural, veículo de protesto, o português Manuel Ferreira, autor do romance Hora di Bai (1961), e Antônio Aurélio Gonçalves.
Em Moçambique, são excelentes o poeta José Craveirinha, de sensibilidade exposta à explosiva e revolucionária negritude, o escritor João Dias, de Godinho e contos outros (1962), Luís Bernardo Honvana e, particularmente, Gowana Malangatana, que traz para seus versos o mundo mágico de sua cultura original. São ainda nomes essenciais da africanidade os são-tomenses Francisco José Tenreiro, poeta, e Francisco Viana de Almeida, contista de Maiá Póçom (1037).
Em línguas autóctones. A partir do século XIX, pelo menos cinco das línguas africanas adquiriram uma pequena tradição escrita e literária: o suaíle, em que se escreveram poemas épicos de influência árabe e prosa tipicamente oriental, o zulu, o soto, xhosa, e sobretudo o ioruba, em que já se expressaram romancistas e dramaturgos de obras extraordinariamente ricas em motivos africanos.
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