David Copperfield | Charles Dickens

David Copperfield | Charles Dickens

David Copperfield | Charles DickensEstas páginas propõem-se mostrar se virei a ser o herói da minha própria vida, ou se alguém mais tornará essa posição. Para começar do princípio, lembro que nasci –segundo me informaram e creio – pela meia-noite duma sexta-feira, em Blunderstone, no Suffolk. Fui um filho póstumo; meu pai fechou os olhos à luz deste mundo, seis meses antes que os meus se abrissem. Ainda hoje me impressiona a idéia de que ele nunca me viu; e ainda mais estranho a vaga lembrança da minha compaixão pueril pela sua lousa branca, deitada sozinha no cemitério do adro.

Meu pai fôra o sobrinho favorito duma tia que era o principal magnata da nossa família. Mas a senhorita Trotwood – ou miss Betsey, como a chamava a minha finada mãe, quando logrou vencer o temor dessa formidável personagem, a ponto de mencioná-la – julgara-se mortalmente ultrajada pelo casamento do sobrinho, alegando que a noiva eleita, que ela nunca vira, não passava duma "boneca de cera".

Fosse como fosse, na tarde dessa sexta-feira – seja-me lícito chamá-la memorável – minha mãe, sentada muito tímida e triste diante da lareira, ergueu os olhos para a janela, viu uma estranha dama subir o jardim e teve o pressentimento infaIível de que era miss Betsey. Abriu, pois, a porta.

– A senhora David Copperfield, se não me engano – disse miss Betsey.

– Sim – murmurou minha mãe.

– A senhorita Trotwood – tornou a visitante. – Atrevo-me a dizer que deve ter ouvido falar dela."

(...)
"Entretanto, eu me afeiçoava cada vez mais a Dora. Quando o senhor Spenlow me anunciou que se festejava, nessa semana, o aniversário dela e me convidou para o piquenique, fiquei fora de mim. Chego a corar, quando me lembro da gravata que comprei. As minhas botinas ficariam melhor numa coleção de instrumentos de tortura. Às seis da manhã do dia marcado eu já estava no mercado de Covent Garden para comprar um ramalhete. Às dez horas, montando o cavalo que alugara para a ocasião, – um belo baio – trotava rumo a Norwood."

(...)

– Deixe-me trazer aqui o sofá ou a chaise-longue, tia – atarei. – Por que fica nessa posição incômoda?

– Obrigada, Trot – replicou ela. – Prefiro sentar-me nos meus bens – e lançando um olhar à senhora Crupp, observou:

– Não pretendemos obrigá-la a ficar aqui esperando, senhora.

– Posso pôr mais um pouco de chá no bule, antes de sair, senhora? – perguntou a senhora Crupp. – Quer que eu traga mais rnanteiga?

Ou resolve-se a provar um ovo bem fresco? Não há nada que eu possa fazer pela sua querida tia, senhor Copperfield?

– Nada, minha senhora – replicou minha tia. – Estou muito bem, obrigada.

A senhora Crupp, que não se cansava de sorrir, para evidenciar a sua meiguice, de inclinar a cabeça, simulando fragilidade, e de esfregar as mãos, para exprimir o desejo de ser prestativa, recuou gradualmente sorrindo, dobrando a cabeça e esfregando as mãos, até sair da peça.

– Dick – chamou minha tia. – Lembra-se do que eu lhe disse acerca dos indivíduos servis e dos adoradores da riqueza? A senhora Crupp é um deles.

Notei que tia Betsey me observava, quando me julgava distraído com outra coisa, e percebi nela certo embaraço.

– Trot – disse-me ela, afinal. – Trot, você se habituou a ser forte, a confiar em si mesmo?

– Creio que sim, tia.

– Então, por que, meu amor – continuou ela, fitando-me seriamente – por que acha que eu prefiro passar esta noite, sentada sobre os meus bens?

Sacudi a cabeça, incapaz de adivinhar.

– Porque isto – explicou minha tia – é tudo o que tenho; porque estou arruinada, meu caro. Tudo o que possuo está neste quarto, exceto a chácara, que entreguei ao cuidado de Janet. Cumpre-nos afrontar corajosamente os reveses e não deixar que eles nos assustem, meu querido. Precisamos aprender a representar. Saberemos viver no infortúnio, Trot!

(...)

"– Trot, meu querido – disse minha tia, vendo-me pronto a preparar-lhe a habitual bebida noturna – nada de vinho! Só cerveja.

– Mas há vinho aqui, tia. E a senhora sempre a preparou com vinho.

– Guarde isso para uma ocasião de doença – tornou minha tia. – Não devemos esbanjá-lo. Cerveja para mim. Meio litro.

Sorveu gostosamente a bebida, ensopando nela as torradinhas, e continuou:

– Trot, não me preocupo, em geral com caras estranhas;mas gosto de Barris, sabe? Ela lhe quer muito bem. A pobre tolapediu e rezou para passar adiante uma parte do dinheiro dela,
porque tem de mais. Uma simplória!

Lágrimas de prazer saltaram, positivamente, dos olhos de minha tia.

– Ah! Misericórdia! – suspirou ela. – Sei tudo agora. – Trot. Barkis e eu tagarelamos bastante. Então, você imagina que está apaixonado.

– Imaginar, tia? – exclamei, corando quanto podia corar. – Eu adoro-a com toda a minha alma!

– Dora, naturalmente – embalou minha tia. – E quer dizer que essa coisinha é urna feiticeira, não? É ingênua?

– Ingênua, tia?

Eu nunca me preocupara com a candura de minha noiva. A idéia não me era estranha, é claro; mas impressionava-me como novidade.

– Bem, bem! – disse minha tia. – Perguntei apenas. Não queria depreciá-la. Nobre casalzinho! Então, pensam que nasceram um para o outro, e preparam-se para urna vida de festas, como dois lindos bonecos de confeitaria, heim, Trot?

Essa pergunta, formulada em tom bondoso e gentil, ao mesmo tempo jovial e melancólico, tocou-me profundamente.

– Ah, Trot! Cego, cego, cego!

– Conheço alguém – prosseguiu minha tia, após breve pausa – que, a despeito duma índole dócil, é capaz duma afeição séria que me lembra o meu pobre pequeno. Seriedade, eis o que essa pessoa deve procurar, para o suster, para o melhorar, Trot. Seriedade, profunda, leal e sincera!

– Se a senhora conhecesse a seriedade de Dora, tia! – exclamei.

– Oh! Trot! – repetiu ela – cego, cego! E, sem saber por que, senti uma vaga apreensão envolver-me,

como uma nuvem."

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