Comunhão Anglicana
"Entre as comunhões nas quais subsistem em parte as tradições e estruturas católicas, ocupa lugar especial a comunhão anglicana". Contida no documento sobre ecumenismo do concílio Vaticano II, essa afirmação não é propriamente uma novidade. Afinal, a Igreja Anglicana, à diferença de outras, nascidas da Reforma protestante, considera a si mesma "uma parte da igreja una" e seu fundador, o rei Henrique VIII da Inglaterra, estudioso de teologia e refutador de Lutero, recebeu do papa o título de defensor da fé, que os monarcas britânicos ostentam até hoje.
História
A reforma religiosa na Inglaterra e a reforma protestante iniciada por Lutero tiveram origens muito diferentes, embora ocorressem na mesma época. Os motivos sócio-políticos que geraram o luteranismo, e pelos quais este logo teve respaldo popular, não existiram na Inglaterra -- onde, pode-se dizer, o anglicanismo foi imposto pelo rei e teve pouca aceitação inicial entre os súditos.
Entretanto, a rigor não se pode afirmar que a ruptura entre a Inglaterra e o papado carecesse de antecedentes. Ao longo dos séculos XIII e XIV já haviam ocorrido entre os reis e o clero vários conflitos, cujas conseqüências foram um crescente predomínio do poder real e uma acentuação do caráter nacional da igreja. Com Henrique VII, que reinou entre 1485 e 1509, a coroa se apoderou de boa parte das propriedades dos mosteiros.
A origem da Igreja Anglicana se encontra, no entanto, na recusa de Roma em declarar nulo o casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão, celebrado em 1509 e do qual não haviam nascido descendentes varões. Pretendendo garantir a estabilidade da dinastia, em 1527 o rei tentou sem êxito conseguir do papa Clemente VII a anulação do casamento. Seis anos mais tarde, Thomas Cranmer, nomeado pelo rei arcebispo de Canterbury, declarou inválida a união entre Henrique e Catarina e celebrou o casamento do monarca com Ana Bolena. Seguiu-se a excomunhão do rei, que reagiu à Santa Sé, obtendo do Parlamento a aprovação do Estatuto de Supremacia (1534). O documento proclamava o monarca chefe da igreja na Inglaterra, declarava a coroa fonte suprema de jurisdição e privava o papa das rendas procedentes dos bens eclesiásticos.
As decisões do rei, cujas medidas arbitrárias e frequentemente cruéis desde então se multiplicaram, encontraram clara resistência por parte do clero e do sínodo dos bispos. O monarca dominou prontamente os insatisfeitos e reprimiu com dureza as revoltas populares ocorridas em diversas regiões do país. Na própria corte e no alto clero levantaram-se vozes contra a conduta de Henrique VIII; os dois nomes mais representativos dessa resistência foram o cardeal John Fisher e o chanceler Thomas More, ambos condenados à morte e executados por ordem real.
Em 1536, Ana Bolena foi executada, acusada de adultério, e no mesmo ano fecharam-se os conventos menores, o que acarretou novas revoltas. O confisco, pouco depois, dos grandes mosteiros, e a passagem de seu patrimônio para as mãos do rei e dos altos cortesãos, assegurou a reforma da igreja da Inglaterra.
Depois da morte de Henrique VIII em 1547, subiu ao trono Eduardo VI, filho de Jane Seymour, terceira esposa do falecido rei. Até sua morte em 1553, Eduardo, um jovem de saúde frágil, reinou sob a influência do grupo de nobres que mais se haviam beneficiado da ruptura com Roma. Permaneciam as diferenças formais e doutrinárias entre o cisma da Inglaterra e os protestantes do continente, mas nesse momento ocorreu uma manifesta influência do luteranismo: redigiu-se um novo Book of Common Prayer (Livro de oração comum) totalmente escrito em inglês, proibiram-se atos litúrgicos tradicionais e muitas igrejas foram destruídas ou despojadas de todos os seus bens.
O reinado de Maria Tudor, filha de Henrique VIII e Catarina de Aragão, significou uma volta à comunhão com Roma. As atitudes da rainha foram tão desastradas, e a perseguição aos protestantes tão acirrada, que o único resultado foi o de oferecer numerosos mártires à nova igreja. O longo e próspero reinado de Elizabeth I, sucessora de sua meia-irmã Maria em 1558, consolidou definitivamente a instauração anglicana.
Nos séculos seguintes, contudo, não faltaram tensões dentro do anglicanismo, a ponto de se falar da High Church (Igreja Alta), mais próxima do catolicismo, e da Low Church (Igreja Baixa), de posições mais reformistas. A guerra civil de 1642, na qual saíram vitoriosos os puritanos, liderados por Oliver Cromwell, teve origem religiosa. Outro movimento, resultante da simpatia do rei Jaime II pelos católicos, acarretou o fim da dinastia dos Stuart.
Na primeira metade do século XIX houve um importante movimento renovador no seio da comunidade anglicana. Conhecido como movimento de Oxford, seu representante mais notável foi John Henry Newman, prelado anglicano que, convertido ao catolicismo em 1845, foi mais tarde designado reitor da universidade católica de Dublin e nomeado cardeal em 1879 pelo papa Leão XIII. O senso crítico e o espírito aberto de John Newman caracterizaram o grupo de Oxford, que defendeu uma aproximação entre as duas igrejas. Essa postura, inusitada na época, deixou uma profunda herança.
Organização e doutrina. O chefe da Igreja Anglicana é o monarca, embora com relação a esse ponto se devam assinalar certas nuances importantes. Elizabeth I, ao consumar a separação definitiva da igreja de Roma, já se declarava "a única governante suprema do reino, tanto nas causas temporais como nas espirituais", o que, em sentido estrito, não significa que o soberano fosse chefe da igreja, mas sim a autoridade máxima nos assuntos legais, submetidos às leis do Parlamento. O arcebispo de Canterbury é o "primaz de toda a Inglaterra"; seguem-se hierarquicamente os bispos, presbíteros e diáconos, e somente os bispos têm autoridade para conferir ordens sagradas, confirmar os fiéis e consagrar templos.
A doutrina da Igreja Anglicana está contida nos chamados "trinta e nove artigos", que tiveram sua primeira redação em 1571, na intenção de obter a uniformidade doutrinária. Hoje em dia, com algumas exceções, os "artigos" não são usados fora da própria Inglaterra. Além deles, reconhecem-se três credos: o de Nicéia, o de Constantinopla e o Apostólico; e, como normas comuns, o Catecismo, as Homilias e o Book of Common Prayer, o qual, entre outras coisas, fixa a liturgia dos atos de culto. Nesse último aspecto, o movimento de Oxford mudou consideravelmente a vida paroquial, a tal ponto que às vezes não é fácil distinguir as cerimônias e o aspecto dos templos anglicanos da liturgia e dos templos católicos.
Nos últimos tempos, os teólogos anglicanos exerceram grande influência na aproximação entre as igrejas da Inglaterra e de Roma, sobretudo a partir do concílio Vaticano II , no qual estiveram presentes ilustres representantes anglicanos. Apesar disso, continuam existindo diversos aspectos nos quais o acordo não parece fácil, especialmente os que se referem aos dogmas da Conceição e da assunção da Virgem Maria e ao da infalibilidade do papa.
Atualmente, a comunhão anglicana é composta pela igreja da Inglaterra, a da Irlanda, a de Gales, a Episcopal Escocesa, as do Canadá, Austrália e Nova Zelândia, a da África do Sul e, finalmente, a Episcopal Protestante dos Estados Unidos, além das igrejas estabelecidas nas antigas colônias britânicas.
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