Mito | Caráter e Conteúdo do Mito

Mito | Caráter e Conteúdo do Mito

Mito | Caráter e Conteúdo do MitoPanorâmica Geral
O termo mito deriva do grego mythos (“palavra”, ou “discurso”), cujo exato significado se es-tabelece na contraposição com o termo logos. Também este último termo pode ser traduzido com “palavra”, mas somente no sentido de uma palavra que provoca discussão, no sentido de um “argu-mento”. Mythos, quando significa “mito”, é o termo que indica uma história que trata dos deuses e dos seres sobrehumanos. O mito é uma expressão verbal do sagrado: refere realidades e eventos das origens do mundo que mantêm a sua validade como fundamento e como meta de tudo o que existe. Portanto, o mito serve de modelo para a atividade humana, para a sociedade dos homens, para a sua sabedoria e conhecimento. O termo mitologia se refere ao inteiro corpus dos mitos presentes em uma determinada tradição. Mas usa-se também para indicar o estudo dos mitos.

A definição que oferecemos contém alguns elementos sobre os quais nem todos os especialis-tas estão de acordo ou põem a mesma ênfase. Contra o uso do termo sacro, por exemplo, se poderia dizer que ele tenta definir o objeto, o “mito”, em ermos de alguma coisa que falta de clareza mais ainda do que a definição. Para o historiador das religiões, contudo, não existe incerteza sobre este ponto. A distinção entre “o sagrado” e “o profano”, enfatizada pelo sociólogo e filósofo francês, Émi-le Durkheim (1858-1917), se funda na observação banal: todas as tradições e todas as sociedades hu-manas se voltam ao sagrado e o distinguem de alguma forma. O problema não é a sua realidade últi-ma ou metafísica. O que se coloca em primeiro lugar não é o caráter mais genérico do sagrado, mas o fato que o sagrado é distinto das coisas mundanas, ordinárias, profanas e quotidianas. Ao comunicar o sagrado, o mito torna acessível através das palavras o que não é acessível por nenhuma outra forma, e as palavras utilizadas são diferentes de todas as outras palavras. Além disso, mais em geral, elas pos-suem uma autoridade extraordinária e são distintas do discurso comum. A linguagem do mito não provoca discussão: o mito não demonstra, mas revela. O exemplo mais conhecido no Ocidente, isto é, as palavras que abrem o Gênesis: “No princípio Deus criou o céu e a terra”, são bem diferentes das palavras de qualquer capítulo teológico sobre a “doutrina da criação”: este último, de fato, olharia, ao analisar, a sistematizar e a discutir os atos criativos de Deus, não simplesmente revela-los. As pala-vras do mito, além disso, devem dar razão de sua validade, onde o mito é a sua validade.

O mito, que tenha como objeto as ações da divindade ou outros eventos extraordinários, repor-ta-nos sempre aos “inícios de todas as coisas”. Por isso a cosmogonia, isto é, o nascimento do mundo, é um tema mítico muito freqüente. Em todo caso, a época na qual o mito nos reporta é bem diverso da nossa: trata-se de um tempo situado para além de toda percepção humana e, portanto, os eventos e as realidades consideradas são totalmente diferentes dos fatos dos quais os homens se ocupam em sua existência quotidiana. A autoridade do mito não é, portanto, simplesmente análoga às várias autorida-des terrenas.

O mito representa uma das três formas de expressão religiosa: o discurso sagrado, os atos sa-grados e os lugares sagrados. Como tal, aparece em muitas tradições al lado dos lugares e dos objetos sagrados (ou, aos símbolos) e aos atos sagrados (isto é, aos ritos cultuais). O motivo pelo qual os mi-tos atraem a atenção dos estudiosos é o meio do qual se servem: as palavras. Pode-se esperar que ilus-trem a inteira vida religiosa de uma comunidade, lançando luz especialmente sobre ações rituais e sobre objetos sagrados, que por seu lado não falam, ou falam raramente e de forma pouco clara. O templo como eixo central ou o mastro sagrado, por exemplo, podem ser de enorme importância na vida religiosa de uma certa comunidade, mas muitas vezes somente um mito explica o seu significa-do, a sua origem, o seu fundamento e a razão de seu papel central na vida religiosa daquela comuni-dade.

Mito, símbolo e ritual
O fato de que a modalidade de expressão do mito seja aquela verbal pode, em parte, explicar numerosos problemas que o tema destacou, da antiguidade aos nossos dias. Os mitos foram conside-rados como sendo tentativas conscientes de velar proposições racionais, ou alegorias de eventos histó-ricos, fantasias poéticas, expressões inconscientes de desejos interiores, esquemas mentais de classifi-cação, estruturas sociais. Muitas tentativas dos estudiosos revelaram-se úteis para iluminar algumas relações, mesmo se nenhuma dessas tentativas conseguiu alcançar uma explicação global e totalmente satisfatória. Uma explicação deste tipo, aparece, impossível de ser concorde, assim como acontece para outros inesgotáveis objetos de pesquisa, como “a arte” ou “o universo”.

Mas exatamente como no caso destes últimos objetos, a nossa pesquisa não deve limitar-se a acumular os resultados das diversas abordagens culturais e histórias especializadas e de visões meto-dológicas fragmentárias. Ao contrário, cada pesquisa e qualquer autêntica ciência da mitologia, deve levar seriamente em consideração também o complexo da expressividade religiosa no âmbito da qual os mitos explicam a sua função. Evidentemente, os mitos são linguagem, discurso e literatura. Natu-ralmente podem revelar-nos alguma coisa da sociedade na qual foram formulados. E, em particular, podem testemunhar itinerários humanos mais profundos dos que emergem na vida civil. A expressi-vidade religiosa, na sua tríplice forma de discurso sagrado, dos atos sagrados e dos lugares sagrados, permanece essencialmente unitária e seria melhor considerar estas três formas, que distinguimos, co-mo simples aspectos que se nos manifestam: a nossa diferenciação entre as três formas é apenas exte-rior, conceitual e formal. As três formas, de fato, acontecem sempre juntas, em cada cultura. Podemos unicamente constatar que em geral uma das três formas assume um papel predominante, razão pela qual algumas civilizações apresentam uma grande riqueza de mitos, outras de rituais, outras de luga-res sagrados. São, portanto, os documentos que muitas vezes nos impelem a examinar isoladamente o mito, ou uma das três formas de expressão. Nestes casos, concentrar a nossa atenção sobre os mitos certamente será útil dentro da finalidade de nossa pesquisa.

Também uma impostação sociológica, psicológica ou de outro tipo pode igualmente ser escla-recedor, mas deve-se evitar que a coerência de uma tradição religiosa termine por desmoronar entre as fendas de uma tal impostação. Como no caso de um computador, cujas respostas dependem essen-cialmente das perguntas feitas, cada uma das nossas ciências e de nossas disciplinas pode fornecer respostas somente em conformidade à própria definição dos problemas. O problema ‘semântico’ do historiador das religiões, por exemplo, não representa uma simples extensão da lingüística. A propósi-to da definição de religião, prescindindo dos detalhes, que podem ser os mais diversos, tal definição deve ter de alguma forma a ver com a “totalidade” da orientação humana, e por isso, com as certezas e assunções fundamentais relativas a cada uma pesquisa particular e fragmentária, atividade ou pro-dução. O historiador das religiões trata esta “totalidade” não como na filosofia, refletindo sobre as premissas para elaborar um pensamento e uma ação coerentes e justificáveis, mas estudando o teste-munho dos documentos religiosos nas tradições humanas. A pergunta fundamental não é “qual é a verdade” mas “o que as sociedades, as civilizações e as comunidades julgaram necessário indicar e preservar como valor fundamental da sua inteira existência”. Aqui o estudo dos mitos se torna o ar-gumento óbvio do estudo no âmbito da inteira documentação religiosa.

Unidade do mito e variabilidade da cultura
Enorme é a variedade das culturas, de suas línguas, de seus meios de produção e de sua avali-ação daquilo que é essencial. Tal variedade impulsiona a procurar uma explicação dos mitos na espe-cificidade de cada sociedade e, desta forma, se termina, evidentemente, por obter muitas respostas a muitas perguntas. Ignorar a especificidade das diversas tradições seria o pior entre os erros de méto-do. Contudo, mesmo depois de ter estabelecido este princípio, é essencial recordar que o mito, por definição, ressalta a realidade e os eventos aparentemente na origem e no fundamento do mundo. Isso esconde uma dificuldade sob a superfície. “O mundo” sugere de um lado uma totalidade unitária, mas muitos são os mitos que pertencem a uma multidão de culturas e de épocas. Seria necessário concluir que a unicidade do mundo representado nos mitos é, no melhor dos casos, uma ficção coleti-va característica de uma única tribo. Mas esta conclusão seria incorreta.

O problema relativo à origem do mundo e àquilo pelo qual o mundo permanece, fundamen-talmente não requer, uma fórmula imutável. Não leva a uma resposta que proíbe a variedade, mas a uma resposta que a compreende. Os mitos não variam apenas de cultura para cultura, mas cada um deles é, de alguma forma, aberto à transformação. Os alimentos e as provisões fundamentais e os ins-trumentos para procura-los são, por exemplo, conteúdos que freqüentemente acontecem nos mitos cosmogônicos: tais elementos essenciais à existência humana diferem muito nas comunidades de ca-çadores e coletadores, nas sociedades arcaicas de cultivadores e de pastores e nas tradições históricas mais complexas. De qual forma tais elementos são essenciais para o mito cosmogônico? A resposta é que são ao mesmo tempo essenciais e totalmente insuficientes, porque o problema vai muito mais longe do que mera nutrição e dos outros interesses do homo faber fornecido pelos requisitos da sua cultura específica. Todos os mitos levam em consideração estas necessidades absolutas e assinalam-lhes um papel especial na origem do mundo. O problema que o leitor moderno precisa enfrentar é semelhante ao da física moderna, na qual duas diversas teorias da luz – a ondulatória e a das partícu-las – podem ser ambas igualmente válidas, apesar de não serem conciliáveis. A física, então, preferiu empregar a noção de complementariedade, em vez de lançá-las em disputas infrutuosas na recíproca exclusão das duas teorias. Os problemas teóricos da história das religiões não se limitam, naturalmen-te, a um ou a poucos casos. Contudo, o problema, do ponto de vista epistemológico, se revela análo-go: o que interessa não é o número exato das diferentes explicações.

Apesar da semelhança entre uma ciência como a física e a história das religiões, a situação desta última é muito diversa. A multiplicidade das mitologias, de fato, tem conseqüências metodoló-gicas imediatas e de importância fundamental desde o princípio das nossas pesquisas, no momento em que tal multiplicidade é imediatamente observável e não constitui simplesmente um sub-produto das conclusões finais. Cada pesquisador precisa colocar-se no contexto de uma determinada tradição religiosa: uma escolha absolutamente necessária para adquirir alguma prospectiva em relação a um mito qualquer. Não há “objetividade” que equivalha à neutralidade; não há compreensão se o sujeito eliminou a si mesmo. Esta “subjetividade” muito necessária não constitui uma posição excêntrica individualística ou um solipsismo: é simplesmente o reconhecimento da única base na qual um fenô-meno religioso pode ser individuado.

Após esta comparação metodológica entre a história das religiões e a física, podemos afirmar que: 1) O mundo das religiões, ao produzir os seus mitos, não está distante das ciências naturais como se pensou por muito tempo nos estudos clássicos e sociais que se desenvolveram na linha da obra do filósofo e historiador alemão Wilhelm Dilthey; 2) O mundo das ciências pode ficar de alguma forma influenciado pela mitologia, mesmo contra as intenções dos cientistas; 3) Na medida em que estas duas primeiras afirmações têm significado, deveriam ser consideradas como complementares. Quanto ao que se refere ao valor das primeiras duas afirmações, isso dependerá do “sujeito” ou do “observa-dor”, na base da reflexão e da oportunidade. A “complementariedade” entre as duas afirmações é uma conclusão diferente: é o resultado de uma ulterior reflexão “secundária” e se remete à esperança que necessariamente acompanha a continuação da existência e da pesquisa.

É interessante para o historiador das religiões que se ocupa de mitos, constatar que o antigo problema da unidade da natureza suscita atualmente um renovado interesse entre os cientistas. Não tem motivos para tirar conclusões apressadas ou comparar tal interesse, nas suas várias expressões, a certos mitos antigos; contudo, exatamente este retorno de interesse é por si mesmo fascinante e susci-ta a esperança de uma superação das velhas e inúteis barreiras entre “as ciências humanas” e “as ciên-cias”.

O tema da simetria recebeu muita atenção e tem raízes mais profundas na estética; também neste caso, a ligação com a mitologia parece mais difícil de definir. Segundo Santo Agostinho, a si-metria é uma entidade racional, no momento em que não acontece na natureza, mas somente nos pro-dutos do homem. Graças à ela Deus criou o homem à própria imagem. Atribuir o pensamento de A-gostinho à filosofia, à ciência ou à mitologia dependerá da rede dos pressupostos aos quais se faz re-ferência.

No estudo científico da política, o poder é um conceito necessário. Naturalmente trata-se de uma abstração, porque os detentores do poder não são estéreis tubos de laboratório cheios deste ele-mento. A religião, com os seus elementos míticos, reveste um papel fundamental no exercício do con-trole político: o rei indiano Bimbisara apoiava a primitiva comunidade monástica do Buda, ao passo que o soberano britânico leva até hoje o título oficial de defensor fidei.. No século XIX e XX vimos um crescimento das teorias, dos slogans e das ideologias políticas. Em todos estes casos a colocação em jogo à a natureza da religião e do mito, natureza que, contudo, não se apresenta nunca na sua pu-reza primitiva, mas sempre em um estado de mistura. O fato que o homem seja um ser religioso (além de político, filosófico e coletor de conhecimentos), não constitui necessariamente um fato positivo ou fascinante. Dizer que o homem é homo religiosus não significa necessariamente dizer “alguma coisa bela”, A “unidade do mito”, nas diversas culturas e nas diversas pesquisas sobre o homem, representa a afirmação de um problema maior do que a descoberta de um imaginário núcleo misterioso, puro, cognoscitivo e dialógico, válido para toda a existência humana.

Mircea Eliade, mais do que qualquer outro, mostrou o significado fundamental dos mitos cosmogônicos, um significado que aparece evidente na maior parte das tradições. Qualquer que seja o argumento dos outros mitos – aqueles relativos à origem dos animais, das plantas, das instituições ou de qualquer outra coisa – sempre tem por suposto que o seu fundamento resida nos mitos da criação do universo. Também os mitos escatológicos, que aparentemente colocam um “fim” em contraposi-ção ao princípio do mundo, não omitem sua relação à cosmogonia. Todas as escatologias se manifes-tam como renovação de uma origem. É bem conhecida a referência a Jesus Cristo como ao “novo Adão”. O movimento protestante, por seu lado, se empenhou em restabelecer a forma pura e originá-ria do Cristianismo. Até no marxismo (especialmente segundo as idéias do jovem Marx), o típico mito escatológico da sociedade sem classes resulta explicitamente conexa com a retomada das condi-ções originárias da humanidade, isto é, com uma sociedade sem propriedade privada.

Caráter e conteúdo do mito
À primeira vista, os mitos têm muito em comum com algumas formas de literatura popular. Como as fábulas, por exemplo, eles narram eventos “sobrenaturais”; como as lendas e as sagas (con-tos) tratam de figuras extraordinárias; e assim por diante. A autoridade dos mitos é claramente distin-guível da característica de outras narrações. O mito, de fato, se apresenta tipicamente como narração de um tempo totalmente diferente daquele de nossa experiência (“no princípio...” ou “antes que o céu e a terra fossem criados...”): ao passo que na fábula tradicional, mesmo que narre eventos maravilho-sos, inicia com “era uma vez...”, referindo-se a um tempo semelhante ao nosso. Os heróis dos contos e os protagonistas das lendas são, sem dúvida, seres superiores a todos os humanos, mas seu tempo é semelhante ao tempo histórico da nossa experiência.

A épica representa um caso particular, uma vez que seguidamente constitui para nós uma fon-te primária para o conhecimento dos mitos: veja-se, por exemplo, o papel da Ilíada e da Odisséia na tradição ocidental. E, contudo, a épica enquanto tal, não possui a autoridade que é típica dos mitos, se se exclui a sua apreciável função pedagógica, exercita genericamente sobre a sociedade. Os mitos inseridos nos textos épicos e as referências mitológicas contidas em tais textos podem ser considera-dos elemento de um esquema educativo: graças a eles cada um deveria assimilar os modelos funda-mentais e importantes da tradição religiosa. Mas a épica, além da instrução, provê também a atenção de seus ouvintes. Não se pode dizer o mesmo dos mitos, ainda que seja possível falar do “estilo” dos mitos, estilo que tende a fascinar e captar a atenção.

Os temas do mito são inumeráveis. Seus personagens são muitas vezes deuses e deusas, às ve-zes animais, plantas, montanhas, ou rios. Contudo, em cada caso, o mito liga direta ou implicitamente a sua exposição de eventos singulares a um tempo bem diferente, no qual coloca a própria autoridade. A grande variedade de mitos pode ser analisada melhor se nos colocamos em relação com os perso-nagens ou com os eventos que são descritos, mas em relação às diferentes culturas nas quais surgi-ram: considerando-os corolários das estruturas culturais, mesmo se não necessariamente resultados de condicionamentos culturais. As informações mais importantes sobre os mitos, sobre seus temas e sua classificação, são encontrados mais na cosmogonia.

Estrutura e estilo
Procuraremos sintetizar o que caracteriza as narrações míticas e o que constitui o seu fim.

Quanto ao que se refere a seu fim, em primeiro lugar, é necessário dizer que os mitos, contrariamente à opinião tradicional, não são essencialmente etiológicos (do grego aitia, “causa”), no sentido que não são “Explicações das origens ou das causas”. O termo etiologia pode ser usado somente aderindo ao significado que os Gregos atribuíam até então ao termo aitia: aquilo de “condição primordial”. As-sim, o termo pode também referir-se às condições originárias dos primeiros princípios. Mas este par-ticular significado não é aquele presente na mente dos estudiosos ao se referirem à etiologia. Até pou-co tempo atrás, muitos estudiosos viam nos mitos tentativas pré-científicas de individuar as causa do universo, dos fenômenos naturais e de tudo aquilo que atualmente se ocupam os cientistas. Mas estes estudiosos transcuravam o fato indubitável que semelhante interesse científico pela causalidade é uma característica precisa da história moderna, que coloca sua confiança no progresso tecnológico. Não foi simples coincidência, por exemplo, se James Frazer propôs a “fertilidade” como explicação fun-damental dos infinitos mitos e ritos de cada parte do mundo pouco tempo depois da introdução, na tecnologia agrícola, dos fertilizantes artificiais. Esta leitura dos mitos, amplamente difundida, que via neles uma suposta natureza “ pré-científica”, contrasta, por sua vez, com a explicação que afirma que os mitos eram simples textos de acompanhamento dos ritos. Mas esta última teoria implicava também a idéia que os rituais fossem somente atos mágicos, anteriores ao ‘homem moderno’. Todas estas teo-rias representam simples variações sobre o tema da “mentalidade pré-lógica, um dos produtos mais duradouros do evolucionismo cultural, famoso graças à sua elaboração por parte do filósofo francês Lucien Lévy-Bruhl.

Muitas vezes o mito é recitado numa linguagem particular, arcaica, que difere da linguagem comum. O mito da criação dos Ngaju-Dayak de Bornéu, oferece um exemplo deste fenômeno. A sula linguagem incomum não visa mantê-lo secreto, mas serve para sublinhar o seu significado. A narra-ção mítica funda não somente o mundo em geral, mas ao mesmo tempo, o seu interior, o território, fornecendo uma orientação seja aos vilarejos como lugares nos reinos celestiais. Fundamenta também as divisões sociais e suas funções, como os princípios do sistema legal. Ele é narrado em forma de poesia lírica, como a maioria dos mitos da Ásia sul-oriental. Até agora o mito cosmogônico é recitado em ocasiões particulares, como sucedia no Próximo Oriente antigo por ocasião da coroação de um rei ou da renovação periódica da existência na festa do Ano Novo. A criação do mundo constitui o mode-lo, evocado por seu poder fundamental e fundante.

Como pode ser expressa a realidade que subjaz a cada existência? Como pode ser expresso al-go tão ‘não agarrável’? cada mito responde a estas perguntas de sua forma, no contexto da própria cultura e das suas exigências vitais. Os aspectos particulares do mito são o resultado da capacidade singular da linguagem em ir para além do ordinário, do específico do mundo e dos limites do conhe-cimento e da percepção comum.

A utilização, por parte do mito, de uma linguagem arcaica, de alguma forma artificialmente construída, é uma característica presente não apenas entre os Ngaju-Dayak, mas em outros lugares. Em culturas e em circunstâncias diferentes, e com diferentes motivações, sucedem fenômenos análo-gos: O uso do latim na liturgia da Igreja católica; a importância do eslavo eclesiástico na história da Igreja ortodoxa; o emprego cultual do sânscrito no hinduísmo; finalmente, no antigo mundo babilôni-co, a importância atribuída ao estudo e ao uso da língua sumérica, ainda muitos séculos depois que língua deixou de ser falada. Mesmo que não seja um aspecto universal, esta singularidade de lingua-gem é uma característica do mito que revela a sabedoria de uma tradição que merece ser salvaguarda-da. Entre as outras características, está presente em muitas tradições a precaução especial de recitar os mitos somente em momentos especiais e em lugares especiais. Desta forma, se compreende claramen-te que os mitos não são assimiláveis às histórias comuns. Esta sabedoria da natureza especial dos mi-tos se nota, por exemplo, na narração popular dos índios Wichita, da América do Norte, que narra a competição de um coiote e o seu adversário. Os dois concorrentes se desafiam a narrar histórias e o vencedor será aquele que consegue mais. Naturalmente vence o coiote, cujo repertório é inexaurível: ele é capaz de inventar novas histórias como lhe agrada. Seu adversário, que fica derrotado, conhece somente histórias “não inventadas” e, portanto, narra histórias verdadeiras, que são em número limi-tado. As histórias verdadeiras são, evidentemente, aquelas que nós chamamos “mitos”.

Uma característica universal dos mitos pode ser expressa com o termo humor, apesar da am-bigüidade do termo. Não se trata de brincadeiras e de ocasiões para grandes risadas. É algo semelhan-te àquilo que os romanticistas alemães entendiam como um sorriso que liberta das ansiedades da exis-tência e, portanto, da depressão. Os mitos, quando são verdadeiramente eficazes, tem sucesso onde a linguagem comum fracassa, abrindo-se uma fenda na barreira da nossa compreensão ordinária: por isso, o termo libertação é na verdade, mais apropriado para indicar o seu resultado.

Podemos também considerar o mito como uma forma de sistema doutrinal arcaico, de alguma forma ligado à história da evolução do pensamento. Como o testemunho, isto é, que os “primitivos” e os “antigos” não estavam em condições de pensar como se deveria (e como presumivelmente pensam os homens modernos). Ou ainda, podemos também inserir à força o mito em um esquema lógico que satisfaça a nossa sensação moderna que a razão e a realidade empírica sejam universais e eternas. Em todo o caso, distorções deste gênero não levam em consideração a realidade e a representação imedia-ta fornecida pelos próprios mitos.

Um mito dos Ge (Brasil) se abre afirmando que nos tempos antigos os indígenas não possuí-am nem trigo nem fogo. O mito passa depois imediatamente (o profano diria ‘laconicamente’ ou ‘iro-nicamente’?) a narrar como um membro da tribo leva a mulher na floresta, em um lugar isolado, onde fundam uma colônia e plantam trigo e outras frutas comestíveis. O homem se transforma em uma serpente devoradora de homens; o amante da mulher se encontra secretamente com a mulher, e final-mente, vai embora na companhia de um outro homem: este último termina devorado pelo homem-serpente. A estas alturas, os habitantes da vila matam a serpente e introduzem em sua terra o trigo, os outros produtos cultivados e o fogo. No curso da história, a mulher por duas vezes dá à luz serpentes, primeiro na floresta depois na vila. Os habitantes da vila matam todas as serpentes que encontram entre as cabanas: então uma mulher se retira na floresta e para vingança manda às serpentes, seus fi-lhos, a morder os homens.

Qualquer coisa que se deva ou se possa dizer sobre aitia da inimizade colocada entre os ho-mens e as serpentes, sobre sistemas lógicos escondidos na profundidade ou na relação que acontece entre a aquisição da vida civilizada e a violência, este mito se assemelha a muitos outros porque con-tém eventos extraordinariamente singulares e contraditórios. O humor, sozinho, não pode evidente-mente constituir a decisiva e absoluta categoria de interpretação. Nenhuma etiologia é descartada, nenhuma lógica é julgada inútil; muita atenção é dada aos modelos e aos condicionamentos culturais. Nos mitos se expressa sempre alguma coisa de “liberatório”, alguma coisa que impressiona os ouvin-tes e os arranca de suas atitudes mentais.

Outro exemplo deste fenômeno está na celebérrima narração de Gênesis 1. Deus cria a luz no primeiro dia da criação, ao passo que o sol, a lua e os outros corpos celestes vem a existir somente no quarto dia. No final do capítulo, o sexto dia, Deus designa todas as plantas verdes como alimento para os animais selvagens, para os pássaros do céu, para os répteis e para todas as criaturas viventes. Natu-ralmente esta última afirmação contrasta com aquilo que os ouvintes sabem a respeito dos hábitos alimentares dos animais carnívoros como o leão, por exemplo. Deve-se, portanto, deduzir que a nar-ração não é verdadeiramente uma narração da criação, mas uma narração relativa ao Paraíso. Con-vencidos deste raciocínio ou tocados pela constatação que, segundo esta narração, o deus criador é algo diverso que um motor imóvel, mas somos mais marcados do que persuadidos desta idéia.

O escritor alemão Jean Paul (pseudônimo de Johann Paul Friedrich Richter, 1763-1825), co-nhecido por seus ensaios literários, era plenamente consciente do fato que o cômico não trata argu-mentos fúteis, mas, de argumentos de importância capital. As formas de comicidade por ele definidas não necessitam especiais modificações para poder ser aplicadas também à literatura mitológica. To-das estas formas estão caracterizadas por um desafio dirigido às atitudes “inveterados” da mente hu-mana.

1) Em muitos mitos se manifesta a “confusão dos opostos”. Abundam imagens como a do tempo precedente à criação, quando o céu e a terra ainda não estavam separados, ou de um tempo inicial no qual estavam tão próximos que os homens não podiam estar em posição ereta. Também o ato criativo do Gênesis 1 prevê uma separação das águas inferiores das águas superiores.

2) Muitas vezes os mitos representam uma “inversão dos efeitos”. Um evento desastroso con-duz de alguma maneira a uma grande felicidade, totalmente inesperada para os ouvintes. Um mito deste tipo é a narração cosmogônica induísta do ferver do oceano. Antes do tempo atual, narra-se, antes da criação do mundo, os deuses e is demônios viviam em aparente harmonia. Num dado mo-mento, os deuses quiseram obter a imortalidade e por isso, junto aos demônios, dão início à sua pes-quisa agitando o oceano. Mas por surpresa, contra toda expectativa, em vez da imortalidade emerge um veneno mortal. Todas as variantes do mito narram como o grande deus Siva salva o mundo (que, estranhamente, ainda não apareceu), engolindo pessoalmente o terrível veneno. A versão contida no Ramayana apresenta um particular interessante: é o deus Visnu que sugere a Siva beber o veneno, com o pretexto que a primeira oferta é dele. Variam, portanto, as narrações e suas interpretações, mas sempre Siva termina por beber o veneno, dando origem à fundação do mundo. A “seriedade” deste implícito “começo” aparece evidente; o mesmo acontece também no caso da crucifixão de Jesus Cris-to, que é seguida – sem que nenhum dos atores e dos testemunhos humanos o possa antecipar – pelo triunfo da ressurreição.

3) “Condicionamento subjetivo” é talvez a melhor fórmula para definir a consciência, própria do mito e de seu narrador, da organicidade singular que liga a voz humana que narra, com a realidade sagrada e sobrehumana que é narrada. Tal consciência se pode exprimir nos modos mais diversos, às vezes bem elaborada, outras de forma banal e suposta. Os sudra budistas, que expõem os maravilho-sos ensinamentos e os milagres de Buda e que tornam acessível à libertação, o nirvana, iniciam todos com a expressão: “Assim eu ouvi”. Muitíssimos mitos são disseminados de frases como “Diz-se que...” ou “dizem que...” A tradição budista prevê que cada fiel recite regularmente o inteiro elenco dos nomes. Cada qual medita de forma consciente sobre sua relação com o divino, com o Senhor ab-soluto.

4). O termo grotesco se empregaria com alguma reticência em relação a tradições sacras: mas constitui a forma mais freqüente de começo nas tradições diferentes da nossa. Às vezes se narra mun-dos criados antes do atual, mundos que, contudo, se revelam completos insucessos, como na tradição dos Saora, na Índia. Segundo este mito, houve uma vez um mundo constituído por uma substância resinosa; deste mundo alguns homens fizeram uma destilaria e produziram licor. Esta bebida não era somente excelente, mas demasiado excelente: quando iniciou a correr, pegou imediatamente fogo e assim queimou o mundo inteiro, afundando-o no oceano primordial. Não é difícil reconhecer neste caso vários elementos grotescos. Às vezes o ‘grotesco’ emerge de uma exagerada atenção voltada ao particular ou ao secundário. É como se o caráter grotesco contribuísse para enfatizar a total alteridade daquele tempo dos inícios do mundo, daquele tempo, do qual depende a libertação, a salvação ou a felicidade.

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