(ensaio reflexivo)
Ninguém vê o gelo derretendo. Só nota a água escorrendo.
Assim também são as grandes transições da história: não explodem, evaporam.
Vivemos uma dessas agora.
Mas ao contrário das revoluções barulhentas que enchem os livros, esta vem silenciosa, como o fim de um verão.
Ela chega pelos cantos das cidades vazias, nas escolas com metade dos alunos, no campo sem herdeiros, nas famílias que não se multiplicam.
E mais profundamente, chega dentro do peito, onde o mundo já não faz tanto sentido quanto antes.
Durante séculos, crescemos.
Crescemos como pessoas, cidades, economias.
Medimos nossa existência em números: PIB, curtidas, metas, produção, velocidade.
Criamos um ritmo que ninguém conseguia acompanhar, mas todo mundo fingia que sim.
Agora, algo parou. Ou está parando.
Mas ninguém anunciou.
2020 talvez tenha sido a batida do sino que só os atentos ouviram.
Uma pausa imposta, que expôs a fragilidade do que parecia eterno: o crescimento, o progresso, a aceleração.
Mas a vida não se desfaz de uma vez.
Ela muda devagar.
Como as marés.
Como as estações.
Como o sentido das coisas.
No futuro, talvez historiadores olhem para esta década como o início de uma nova era.
Nós, aqui dentro, chamamos de "crise", de "recessão", de "desânimo".
Mas talvez seja só o corpo do mundo pedindo descanso.
Talvez o excesso tenha adoecido a alma da humanidade.
O mais difícil é que a maioria de nós continua no automático, tentando fazer funcionar um motor que já não tem combustível.
Trabalhando mais, consumindo mais, acelerando — enquanto tudo desacelera.
Sim, estamos atravessando uma ponte invisível.
E ao final dela, talvez não haja mais números.
Talvez haja silêncio.
E espaço para recomeçar.