A Menina Morta | Cornélio Pena

A Menina Morta | Cornélio Pena

A Menina Morta | Cornélio Pena"Pairava sôbre o Grotão inexplicável magia, uma presença indefinível de incerteza e de fuga. Parecia terem seus moradores pressentido a proximidade do advento de alguma desgraça, e tôda a imensa extensão de terra se transformara em grande mar profundo, de águas traiçoeiras, sôbre as quais a fazenda flutuava vacilante a abandonada, sem rumo certo, arrastada por suas ondas negras. Todos se evitavam o mais possível, e as senhoras permaneciam em seus quartos a maior parte do dia e era com frases de saudações banais que se encontravam, sem gestos de familiaridade e de confiança mútua. Carlota andava pela casa, o olhar vazio, como se estivesse à procura de alguma coisa, mas suas mãos não se desprendiam da cintura, e em nada tocava, ao passar silenciosa pelas salas onde todos se calavam quando a via. 

O nome de Celestina não foi mais pronunciado, e não se soube notícias dela por muito tempo, sem ninguém ter se preocupado com sua viagem e sua volta à vila de Pôrto Novo, onde devia ficar residindo. O médico francês, a quem cabia repartir o serviço do partido com o recém-casado, passara a vir diàriamente pela manhã e assim não foi sentida sua falta, e tudo prosseguia na sua monótona sucessão, na trama tranquila do trabalho dos negros, agora feito cautelosamente, sem seus ecos chegarem até a casa. O Sr. Manuel Procópio assumira a direção da lavoura e da criação, e visto os feitôres o respeitarem e conhecerem de muitos anos, não se fazia sentir a ausência prolongada e inexplicada do verdadeiro dono e senhor daquele extenso domínio. Tudo adormecera pois lentamente, em ambiente de paz ameaçada, de espera angustiada em que viviam, e o pêso dessa existência parecia esmagar o grande telhado irregular, tornado ainda mais sombrio sôbre as janelas sempre fechadas, dando a ideia de se terem cerrado sôbre luto da família, e ninguém se atrevia a gritar ordens, a chamar em altas vozes, ou fazer os animais baterem com as patas nas pedras. 

Essa expectativa chegara ao seu acme quando vieram de volta as tropas portadoras de mercadorias até as pontas dos trilhos da estrada de ferro em construção, e que dessa vez, em razão da suspensão do tráfego por algum tempo, tinham ido até o pôrto de Mauá. Traziam cartas e grande carga, tôda ela guardada na tulha, pois eram objetos de valor e delicados no dizer dos dísticos muito grandes escritos em letra vermelha, colados sôbre os caixotes de pinho. Carlota manteve sôbre si muito tempo a missiva a ela entregue, coberta de obreias pretas, prêsas entre os dedos. Não podia reunir as idéias, e sua cabeça parecia ôca, ressonante como a ampla gruta onde se precipitasse a corrente rápida de algum rio, e qualquer movimento por ela feito provocava dores agudas em sua nuca. Notara surprêsa estar o papel debruado de prêto, e bem sabia ser seu significado a morte de alguém, mas estava agora certa dessa perda nada significar em sua vida, incapaz de ser agitada, pois era ela própria fantasma sem compreensão, sem sentimentos, sem ligação à sua volta. Tinha mêdo entretanto de surgir de repente diante de si qualquer acontecimento que a obrigasse a vibrar, e a forçasse a se despertar a si mesma, a reentrar na vida enfim..."

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