O Século do Corno | Francisco de Quevedo y Villegas

O Século do Corno | Francisco de Quevedo y Villegas

O Século do Corno | Francisco de Quevedo y Villegas"Esclarecido senhor, sempre me tem parecido que os homens, ao casarem, devem ser levados à igreja a toque de sinetas como os condenados à forca, e ter preces pela sua alma com Cristo à dianteira e clérigos de S. Caetano que os animem. Todavia, depois de ver a que situação chegamos, quanto a maridos, creio não haver melhor ofício na república do que ser casado, desde que a par com a situação de cornudo. Deus permitiu – graças lhe sejam dadas – que vivêssemos o bastante para reconhecer o que esta tem, por si, de qualidade; e, da parte de quantos o são, tenho vergonha em saber como anda vossa mercê a esconder-se, diríamos que afrontado por se encontrar entre eles. Não me espanta que seja vossa mercê agora cornicantante, como já era missacantante, e realmente sinta algum pejo, posto que achando consolo nos beija-mãos e nas dádivas. Como nós todos, porém, vossa mercê acabará por conformar-se em ter armação e, depois disso, é só ficar de mãos atrás das costas.

Nesta estação vou completar vinte e sete anos e oito dias de cornudo e afirmo, perante, Deus, que tal circunstância me doou mil vidas.

Bem sei como irá vossa mercê sofrer, mais do que tudo, o que as pessoas disserem quando sair à rua: não se lhe dê nenhum corno, que os tem já de sobra! Quem tais coisas sente, molestado se achará – e coitado dele! Se nalguma roda ouvir falar vossa mercê de cornos ou cornudos, deverá a seu respeito dizer mal e bem pior do que qualquer outro. Nós, que assim procedemos, gordos estamos.

Fique vossa mercê certo de que ninguém pode – a ser homem de bem – dizer mal dos cornos, pois ninguém se atreve amaldizer do que ele próprio tem.

Acaso pensará vossa mercê que é cornudo único em Espanha? Terei, nesse caso, de afiançar que muitos se conhecem, por aqui, e nada mais falta que assinalar-lhes, por despacho, quartel e rua. Tal como existem a fancaria e a judiaria, haja também a cornudaria. Só não sei se terá lugar para todos. Ditoso é vossa mercê em ser cornudo único no seu sítio e, assim, por todos forçosamente ajudado. Connosco é diferente a situação, pois disputamos o lucro uns aos outros e, de forma tal, que a não haver transferência de alguns para outras bandas, será inevitável perdermos o lugar. Como pensa vossa mercê que se investe alguém dos seus cornos? Para casarmos já se faz inquisição; e depois da outra, respeitante ao dote, por força nos obrigam a ser cornudos e a contado tempo, escolhendo o marido que pessoa – estrangeiro, secular ou eclesiástico – ao seu gosto melhor se fará. Tempo há de chegar em que iremos lavrar Espanha com charrua puxada a maridos, de inventar-se o nome parelha de casados e, à população dos bairros, chamar-se manada. 

O excesso de mulheres tantos cornudos fez, nos últimos anos, que estão agora a pataco. Na verdade, é prejuízo avultado para a profissão que a antiga província de cornudos, capaz de subjugar o mundo, tenha passado à situação presente em que todo o homem reles se mete a cornudo. Vergonhoso que sejam estes os cornudos, e não os homens de bem! Andasse o mundo a preceito, tal ofício teria de estudar-se por concurso, como qualquer cátedra, a ser dado ao mais apto. Cornudo só haveria de sê-lo quem tivesse carta de curso aprovada pelos Protocornudos e Marradores Gerais. Tudo passaria, assim, a correr melhor ficando estes confrades do osso cientes do seu papel. Nada existe mais amável do que ser cornudo, pois aceita o marido tão bem como ao irmão, padre ou amigo. Ao letrado não prejudica o estudo, e até lhe favorece a lição. 

E ao médico? Como poderia este curar, ou fazer as suas visitas, se acaso estivesse sempre em cima da mulher e não desse vez ao corneador? Cede o lugar aos operários, o cornudo, para fazerem o seu trabalho, e não incomoda ninguém. E no que diz respeito a honras, quem o não segue?, quem lhe não visita a casa?, quem lhe não faz agrados?, quem recusa ter assento à sua mesa?, quem lhe não empresta, ou dá? Olhando ao proveito da causa pública, quantas mortes, quantos escândalos e putas haveria se acaso não existissem cornudos? E como iria tudo isto perturbar aqueles, de entre nós, chamados homens de boa índole? Faça-se a justiça de haver motivo, realmente, para ser cornudo. Porque se é boa, a mulher, dá-la e reparti-la com o próximo passará por caridade nossa e alívio. Noutros tempos, razões destas tiveram o seu lugar; agora, porém, tudo isto é tão corrente e assente, que inúteis se fizeram as fortes argumentações. Seja embora verdade que o primitivo cornudo sentiu algum embaraço e pesar, tudo se encontra agora muito estabilizado. Tanto mudaram as coisas, esta incluída, que até já existem raças de cornudos como os cavalos; e tão vulgarizado está isto que vossa mercê pode ver duzentos senhores à espreita de uma puta para lhe deitarem a mão, como se fora uma porfia, e... toca a casar! No outro dia ouvi dizer que anda de pé a idéia de arranjar novos cornudos e reparti-los pelas ruas, para maior comodidade, todos de rótulo ao alto como os curiais: Despucham-se para Roma, Génova, França e outras partes. Todavia, com a nova regra de clausura para cornudos, que agora se instituiu para moderar o consumo de sedas, cordões, diamantes e galões, não sei se vingarão. De qualquer forma, disso irei dando aviso a vossa mercê, pessoa zelosa em levar a bom termo a nossa imitação. Muito se honre, pois, vossa mercê, e de tudo vá comendo; com todos fale e disfarce, pois verá que bênçãos ainda me dará. Entretanto, para proveito e deleite leia este discurso chamado O Século do Corno, e mande-me sobras da sua mesa.

À nossa mulher beijo as mãos, se estiver vaga."

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