Farsa de Inês Pereira | Gil Vicente

Farsa de Inês Pereira | Gil Vicente

"Primeira Jornada

A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João o terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de Tomar. Era do Senhor de MDXXIII. O seu argumento é que, por quanto duvidavam certos homens de bom saber se o autor fazia de si mesmo estas obras, ou se as furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse, a saber, um exemplo comum que dizem "mais quero um asno que me leve, que cavalo que me derrube". E sobre este motivo se fez esta farsa. Finge-se, na introdução, que Inês Pereira, filha de uma mulher de baixa sorte, muito fantesiosa, está lavrando em casa, e sua mãe é a ouvir missa, e ela diz:

Inês Renego deste lavrar
e do primeiro que o usou
ao diabo que o eu dou,
que tão mau é de aturar;
ó Jesus! Que enfadamento,
e que raiva, e que tormento,
que cegueira e que canseira!
Eu hei de buscar maneira
de viver a meu contento.

Coitada, assim hei de estar
encerrada nesta casa
como panela sem asa
que sempre está num lugar?
Isto é vida que se viva?
Hei de estar sempre cativa
desta maldita costura?

Com dois dias de amargura
haverá quem sobreviva?
hei de ir para os diabos
se continuo a coser.
Oh! Como cansa viver
sozinha, no mesmo lugar.
Todas folgam, e eu não.
Toda vêm e todas vão
onde querem, menos eu.
Hui! [e] que pecado é o meu,
ou que dor de coração?

Esta vida é mais que morta,
sou eu coruja, ou corujo,
ou sou algum caramujo,
que não sai senão à porta;
sou feliz quando me dão
um dia de permissão
que possa estar à janela;
mais feliz que Madanela
diante da Ressurreição."

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