Sá de Miranda (1481-1558) | Portugal


Sá de Miranda (1481-1558) | Portugal

Sá de Miranda (1481-1558) | Portugal
Francisco de Sá de Miranda (1481-1558) nasceu em Coimbra, doutorou-se em Direito na Universidade de Lisboa e freqüentou a Corte até 1521, data em que partiu para Itália. Regressou a Portugal em 1526, depois de um convívio com escritores e artistas italianos que iriam influenciá-lo grandemente. Fruto dessa viagem, trouxe para Portugal uma nova estética, introduzindo o soneto, a canção, a sextina, as composições em tercetos e em oitavas e os versos de dez sílabas. Além de composições poéticas várias, escreveu a tragédia Cleópatra, as comédias Estrangeiros e Vilhalpandos, e algumas Cartas em verso, sendo uma delas dirigida ao rei D. João III, de quem era amigo. Faleceu em Amares, no Minho, na quinta para onde se retirara por não se ter adaptado à vida da Corte.

Comigo me desavim

Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.

Com dor da gente fugia,
Antes que esta assi crecesse;
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.

Que meo espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho imigo de mim?

[Tornou-se-me tudo em vento]

Tornou-se-me tudo em vento,
Após tormento e tormento
Que eu passei cuidando em al;
Em fim veo cedo o mal
E tarde o conhecimento.

Eu assi desenganado,
Vejo vir males maiores.
O tempo a que sou chegado!
Que posso doer às dores,
E dar cuidado ao cuidado.

A António Pereira, Senhor de Basto,
quando se partiu para a Corte co’a casa toda

Como eu vi correr pardaus
Por Cabeceiras de Basto,
Crecerem cercas e o gasto,
Vi, por caminhos tão maus,
Tal trilha e tamanho rasto,
Logo os meus olhos ergui
À casa antiga e à torre,
E disse comigo assi:
Se Deus nos não val aqui,
Perigoso imigo corre.
Não me temo de Castela,
Donde inda guerra não soa,
Mas temo-me de Lisboa
Que, ao cheiro desta canela,
O Reino nos despovoa.
E que algum embique e caia
(Afora vá mau agouro!)
Falar por aquela praia
Da grandeza de Cambaia,
Narsinga das torres d’ouro.
Ouves, Viriato, o estrago,
Que vai dos teus costumes?
Os leitos, mesas e os lumes,
Todo cheira: eu óleos trago;
Vem outros, trazem perfumes,
E ao bom trajo dos pastores
Com que saíste à peleja
Dos Romãos tão vencedores,
São mudados os louvores:
Não há quem t’haja enveja.
Entrou, há dias, peçonha
Clara pelos nossos portos,
Sem que remédio se ponha:
Uns dormentes, outros mortos,
Alguém polas ruas sonha.
Fez no começo a pobreza
Vencer os ventos e o mar,
Vencer quase a natureza:
Medo hei de novo à riqueza
Que nos venha a cativar.
(…) Direis, e eu não vo-lo nego,
Mas quereis também que diga?
Este mundo é armado em briga,
Não busqueis nele assossego,
Nem nûa alta ermida antiga.
Todavia há diferenças
Antre o de cá e o de lá:
Cá, nas mais das desavenças,
Éreis mestres das sentenças;
Para ond’is outrem as dá.


Tereis em troca manjares,
Composições delicadas,
ûas por outras grosadas,
Pelos tempestuosos mares
A grão perigo buscadas.
Convites de quem convida!
Amostram-vos suas tendas:
Quanta cousa i é perdida!
Ceas imigas da vida,
Imigas más das fazendas!
Disto o cheiro, disto a cor,
Que preço não tem igual:
Milagres de Portugal!

— Cousas de tanto sabor
para saberem tão mal!
Ao reino cumpre em todo ele
er a quem seu mal doa,
Não passar tudo a Lisboa,
Que é muito o peso, e com ele,
Mete o barco n’água a proa.

Vereis barcos ir à vela
Uns que vão, outros que vem,
Como que se desavem
C’ûa viração singela.
Tanta força a arte tem.
Os marinheiros vadios,
Que vilmente a vida apreçam,
Polas cordas dos navios
Volteam como bugios
Inda que vos al praceçam.
Não hei por perda esta leve,
Que sejam palavras tudo.
— Mas ao coração acudo!
Senão, dizei: quem se atreve
À dor esperá-la mudo?
São elas, porém, já muitas:
Fê-las ir crecendo a mágoa!
Lembro-vos as vossas fruitas,
Lembro-vos as vossas truitas,
Que andam já por vossas n’água.

Soneto

1
O sol é grande: caem coa calma as aves,
Do tempo em tal sazão, que sói ser fria.
Esta água que de alto cai acordar-me-ia,
Do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
Qual é tal coração que em vós confia?
Passam os tempos, vai dia trás dia,
Incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
Vi tantas águas, vi tanta verdura,
As aves todas cantavam de amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mistura,
Também mudando-me eu fiz doutras cores.
E tudo o mais renova: isto é sem cura!

2
Aquela fé tão clara e verdadeira,
A vontade tão limpa e tão sem mágoa,
Tantas vezes provada em viva frágua
De fogo, i apurada, e sempre inteira;

Aquela confiança, de maneira
Que encheu de fogo o peito, os olhos de água,
Por que eu ledo passei por tanta mágoa,
Culpa primeira minha e derradeira,

De que me aproveitou? Não de al por certo
Que dum só nome tão leve e tão vão,
Custoso ao rosto, tão custoso à vida.

Dei de mim que falar ao longe e ao perto;
E já assi se consola a alma perdida,
Se não achar piedade, ache perdão.

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