Ciclo do Gado | História do Brasil

Ciclo do Gado

Ciclo do Gado

Entende-se por ciclo do gado, na história do Brasil, o período situado entre meados do século XVI e o final do século XVIII, durante o qual as instituições sociais, políticas e econômicas foram influenciadas pela expansão da pecuária no país, principalmente no Nordeste.

A disseminação dos rebanhos bovinos pelo interior do Brasil, mediante um comércio ativo de reses, carne charqueada e couro, assegurou o desenvolvimento de áreas inóspitas e a expansão geográfica colonial, servindo de fator de unidade em quase todo o país.

Já Pero Vaz de Caminha se referia, na carta que enviou a D. Manuel, à inexistência de animais domésticos na nova terra. O boi instalou-se inicialmente à beira-mar, nos três principais núcleos povoadores da colônia, de onde se irradiou: São Vicente, para onde chegaram os primeiros animais ingressados no Brasil, mandados trazer de Portugal em 1534 por D. Ana Pimentel, esposa de Martim Afonso de Sousa; Pernambuco, onde se fixaram as reses trazidas por Duarte Coelho em 1535; e Bahia, onde se localizaram as reses vindas das ilhas do Cabo Verde, na caravela Galga, trazidas por ordem de Tomé de Sousa, em 1549. No ano de 1576, o historiador Pero de Magalhães Gândavo afiançava existir gado abundante em todas as capitanias do Brasil.

Importância econômica do boi. A criação do gado era orientada no sentido de juntar animais para os engenhos de açúcar, e o rápido desenvolvimento dos núcleos pastoris primitivos foi possibilitado pela proibição inicial de abater reses, para não desfalcar os rebanhos. Como não contribuísse para o erário real como o açúcar e o ouro, por nunca ter-se elevado à importância econômica desses produtos, mesmo em seu fastígio, o pastoreio não desfrutava de regalias e sua sobrevivência deveu-se, no litoral, ao açúcar e, no interior, à dificuldade de organização da agricultura nas terras de mineração.

O açúcar originou o primeiro surto da criação de gado bovino, utilizado como elemento motor nos trapiches e engenhos, e para puxar carros de lenha e açúcar. Entretanto, as próprias Ordenações Reais determinavam que a pecuária só deveria ser feita sem prejuízo da lavoura de cana-de-açúcar. Mas foi o boi que criou condições estáveis para a vida e a prosperidade coloniais, com atuação ponderável na dinâmica dos fatores que contribuíram decisivamente para a concretização de certos fatos da nacionalidade. Ressalte-se a relevância do gado na fixação das primeiras levas de colonizadores; no desenvolvimento da agroindústria do açúcar; no devassamento e na ocupação de áreas desérticas; no êxito da exploração aurífera e consequente povoamento da região Centro-Oeste; na abertura de vias de trânsito, interligando núcleos povoadores e consolidando a estrutura econômica, política e social do país; na produção e nos transportes, pois o carro de bois foi o meio de transporte por excelência do interior brasileiro nos quatro primeiros séculos; na alimentação da população; enfim, no enriquecimento do folclore.

Ciclo do couro. O movimento pastoril deu origem a um fenômeno de acentuada importância na história pátria: a formação de latifúndios. Para efetivar a posse e o domínio das sesmarias e para prevenir a caducidade das doações, os senhores de sesmarias valiam-se do expediente de encaminhar para elas prepostos com boiadas. A própria forma de pagamento do trabalho de capatazes e vaqueiros, o sistema de quartas (de cada quatro reses, uma para o preposto), dava origem a novas fazendas de gado. A difusão do pastoreio tornou-se tão grande em dada época que se falou no "período do couro", ocasionado pela possibilidade de retirar da indústria pastoril, depois das necessidades vitais, os objetos de conforto. Do amplo emprego industrial do couro decorreu sua exportação para a metrópole em todo o período colonial.

Pecuária e povoamento. O povoamento do sertão brasileiro tomou forte impulso no século XVII, devido às vias de trânsito abertas pelo gado. Não existia no Brasil nada que se assemelhasse às excelentes estradas que os colonizadores espanhóis receberam como legado dos incas, por exemplo. Tampouco à coroa interessava o estabelecimento de uma rede viária de importância, que desse ensejo a correntes apreciáveis de comércio interno, libertando os grupos ilhados na orla marítima da total dependência das importações da metrópole. Nesse sentido, foram de importância capital para o desenvolvimento e povoamento da colônia as estradas boiadeiras, os caminhos de gado, que tiveram influência marcante na delimitação das capitanias hereditárias, sobretudo nos limites de profundidade. Essas correntes povoadoras criaram novas vilas: Itabaiana (1665), Jaguaribe, Cachoeira e São Francisco do Conde (1693) e Santo Amaro das Brotas (1697), numa interiorização progressiva que continuou no século XVIII. Eram caminhos terrestres, que só de passagem cruzavam rios e, ao contrário do que ocorria no bandeirantismo, todos eles dentro dos limites do Tratado de Tordesilhas.

Partindo daqueles três núcleos primitivos, o gado se expandiu por todo o Brasil, levando nesse movimento pelo menos dois séculos, o XVII e o XVIII. Em 1589, com a conquista de Sergipe por Cristóvão de Barros, criou-se um campo novo e vasto para a expansão do gado baiano. As manadas movimentaram-se rumo às novas terras, até alcançarem a margem direita do São Francisco, onde se espalharam e multiplicaram, a ponto de ter esse rio sido denominado, por muito tempo, "rio dos currais". Mais ou menos na mesma época operou-se movimento idêntico, menos acentuado, em Pernambuco. Em duas colunas, uma pela margem direita do São Francisco, a baiana, e outra pela esquerda, a pernambucana, espalhou-se a gadaria pela Bahia, Sergipe e Pernambuco, primeiro impulso do movimento expansionista que mais tarde atingiria todo o Nordeste.

Expansão e conflito. Os currais instalados junto das fazendas de açúcar, com o fim de atender ao funcionamento dos engenhos, cresceram rapidamente. À medida que se desenvolviam o pastoreio e a lavoura, tornava-se difícil a coexistência de ambos. A prosperidade da agroindústria do açúcar exigia vastas áreas para o espraiamento da cana. As desavenças entre criadores e senhores de engenho se amiudaram a tal ponto que, em 1701, para proteger as plantações, a coroa determinou o afastamento do gado num mínimo de dez léguas (sessenta quilômetros) da costa, onde se encontravam os canaviais, engenhos e mandiocais. Teve início assim o desbravamento das incultas regiões sertanejas. A Casa da Torre, na Bahia, erguida por Garcia d'Ávila, almoxarife de Tomé de Sousa, foi a mais poderosa força na expansão do gado, sobretudo na direção do Nordeste. Salientaram-se, nos anais de seus domínios territoriais, Francisco Dias d'Ávila e Antônio Pereira. Os Guedes de Brito foram outros criadores que ocuparam grande parte dos sertões baianos. Fator que não pode ser esquecido foram as jazidas de sal, os "barreiros do sertão", descobertas no vale do São Francisco, no Ceará e em Alagoas, que propiciaram a expansão da pecuária no Nordeste.

No decorrer do século XVIII iniciou-se a penetração efetiva do gado no Nordeste. O gado baiano do São Francisco tomou duas direções: uma para o centro da colônia, na direção das minas, e outra para o norte. Essa última corrente, chamada dos "sertões dentro", varou a Bahia, margeou o Atlântico, pelo sertão de Jacobina e, desviando-se do Espinhaço, atingiu o rio São Francisco. Transposto este, alcançou o Gurgueia e o Canindé, afluentes da margem direita do Parnaíba. Acompanhou esse rio e invadiu o Piauí, prosseguiu até o Maranhão, onde confluiu com o gado pernambucano que, subindo o Itapicuru, adentrava pelo sertão. Fundindo-se numa só, as duas correntes seguiram para sudeste e irromperam no Ceará. Não é demais o cômputo de um século para o desenvolvimento dessa irradiação, finda a qual o gado se difundira em todo o sertão nordestino, criando-se assim a primeira zona pecuarista no Brasil -- o Nordeste. Entre os grandes desbravadores do período estão Domingos Jorge Velho, Domingos Afonso Mafrense e Francisco Garcia d'Ávila, que ocuparam com suas boiadas toda a parte ocidental do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, o Piauí e, posteriormente, transpondo o Parnaíba, o Maranhão. Mais tarde, o espólio de Mafrense passou a ser gerido pelos jesuítas.

O gado e o ciclo do ouro. No princípio do século XVIII, com a descoberta do ouro, quando o gado já se assenhoreara de uma área imensa ao longo das ribeiras do São Francisco, a geografia do boi no Brasil ampliou-se de maneira considerável. Partindo inicialmente das margens do São Francisco, e depois de Pernambuco, Rio Grande do Norte, Piauí e Maranhão, o gado se espalhou pela região das minas, penetrando depois em terras mato-grossenses e goianas. Também do Rio Grande do Sul vinha gado para as minas, pelo caminho de Sorocaba.

Essa ocupação, atraída pelo lucro fácil das minas, destinou-se a princípio ao consumo dos povoados rapidamente surgidos, que sofriam terríveis crises de abastecimento. Em pouco tempo, o Centro-Oeste, inclusive Minas Gerais, se transformaria, devido ao ouro, na zona pastoril mais importante do país, substituindo, após o esgotamento das minas, o ouro e os diamantes como riqueza econômica.

Com a corrida do ouro, verificou-se grande aumento do preço do boi, que quintuplicou nos campos de mineração, e do escravo, cujo êxodo muito prejudicou a indústria canavieira. Houve um processo de esvaziamento dos núcleos iniciais de povoamento que adensou a população das zonas de mineração e, despovoando as plantações litorâneas, impôs sério abalo à economia açucareira. A esse deslocamento humano somou-se o enorme afluxo de portugueses para os centros mineradores, acometidos da febre do ouro. Fechados que estavam, pela coroa, os caminhos das zonas auríferas para outras regiões, numa tentativa de sustar o desvio do ouro, e proibida naquelas zonas qualquer outra atividade que não o garimpo, o recurso extremo da criação de gado à solta e a importação continuada de reses se apresentou como solução para a alimentação dos mineiros.

Em Goiás, os mananciais auríferos não produziram copiosamente senão durante um quarto de século, e em seguida o gado se transformou na maior riqueza daquele estado. Em Mato Grosso, foi no Pantanal que o boi se fixou, instalando-se nas planícies fertilizadas pelas cheias dos afluentes do Paraguai.

Pecuária no Sul.

Pecuária no Sul. Os campos férteis da região Sul apresentam as condições mais favoráveis à criação, atividade que propiciou sua ocupação. No Rio Grande do Sul avulta a importância do trabalho desempenhado pelos padres da Companhia de Jesus na disseminação do gado vacum. Mesmo enquanto não se achava definida a posse das terras que se estendiam desde Laguna até o rio da Prata, e já iniciadas as incursões dos bandeirantes paulistas por essa vasta área, todo o Sul se transformou num imenso curral de gado, principal móvel da disputa entre Portugal e Espanha pela posse da região.

Durante todo o transcurso do século XVII, os espanhóis se estabeleceram na margem esquerda do Prata. Entre eles havia jesuítas que trouxeram muitas cabeças de gado, no início daquele século. Um fato importante para a proliferação do gado no extremo-sul foi a criação de vacarias. Também os bandeirantes paulistas têm a seu crédito a difusão do gado de São Paulo no Rio Grande do Sul. Com a fundação da colônia de Sacramento, em 1680, intensificaram-se as lutas pela posse das terras e do gado.

Os primeiros estabelecimentos de criação fundados pelos portugueses no sul do Brasil datam de meados do século XVIII e decorreram das incursões dos bandeirantes contra as reduções jesuítas. Mais tarde, como os padres e os índios abandonassem a região e como os bandeirantes desviassem suas atenções para Mato Grosso, o gado, abandonado a seu próprio destino, multiplicou-se assombrosamente.

O boi na alimentação. Como fonte de alimentação, o gado vacum teve na indústria das carnes secas seu principal consumidor durante a fase áurea do ciclo do gado, sobretudo no Nordeste e no Rio Grande do Sul. A indústria saladeiril surgiu no Ceará, no século XVIII, e foi durante muitas décadas esteio da economia nordestina, graças à intensa atividade pastoril do interior, às salinas naturais no litoral e às condições climáticas locais. Era essa espécie de carne o alimento principal dos milhares de escravos. Foi o capitão-mor José Pinto Martins, proprietário de uma "oficina" de carnes no Ceará quem, transferindo-se em 1780 para o extremo sul do país, deu impulso definitivo à indústria de carnes secas, os charques, no Rio Grande do Sul.

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