História do Abstracionismo
No apogeu da pintura realista, em meados do século XIX, o romancista francês Gustave Flaubert profetizou: "A arte será alguma coisa situada entre a álgebra e a música." Faltavam dez anos para o início do movimento impressionista e mais de meio século para a "Primeira aquarela abstrata", de Vassili Kandinski, mas a intuição de Flaubert, ele mesmo um vanguardista, já antecipava uma nova concepção do mundo e da arte.
Conceito e tendências do abstracionismo. A rigor, não se pode falar em artes plásticas abstratas, pois elas não dispensam os elementos concretos que constituem sua matéria-prima. De outro ponto de vista, toda obra artística supõe certo grau de abstração, já que mesmo o mais fiel retrato extrai do modelo os traços julgados essenciais, de acordo com o critério subjetivo do artista. A expressão "arte abstrata", por isso mesmo, tem sido objeto de opiniões contraditórias, mas consagrou-se para designar a criação de formas que não representam fielmente objetos do mundo exterior.
O conceito de obra abstrata como criação artística e expressão da subjetividade do criador é próprio do século XX. Algumas culturas, como a islâmica, que evitam representar figuras humanas e de animais, e a celta, cujas curvas entrelaçadas persistem na arte medieval irlandesa, exibem motivos decorativos abstratos. Não há indícios, no entanto, de que esses estilos hajam influenciado as duas vertentes principais da moderna arte abstrata: o abstracionismo geométrico e a abstração informal ou lírica.
O abstracionismo geométrico se propõe formular leis estéticas baseadas na experimentação plástica sistemática com linhas, figuras geométricas e cores. A abstração informal prescinde do rigor normativo característico da tendência anterior, valoriza a expressão direta da subjetividade e procura materializar as idéias de espontaneidade e totalidade.
Abstracionismo geométrico: origem e evolução. A história da pintura, a partir do Renascimento, se caracteriza pelo propósito de reproduzir os elementos da natureza, integrando volumes e luz. O impressionismo levou esse objetivo às últimas conseqüências, enquanto o nascimento da fotografia liberou o artista da função de copiar a realidade. Abriu-se assim um caminho inverso ao trilhado pela arte até então: o que leva à desintegração e à análise, especialmente adequado ao mundo caótico e multiforme que resultou da revolução industrial e científica.
Os impressionistas, entre os quais Paul Cézanne e Georges Seurat, foram os precursores da nova pintura. Cézanne decompôs os objetos em elementos geométricos básicos (esferas, cones e cilindros), que recombinou para criar novas formas e separar o espaço e a cor. Seurat eliminou a mistura na palheta e transferiu essa tarefa para o olho, justapondo na tela pinceladas de cores em estado puro. Na base desse procedimento se acha a noção de que a luz se compõe das cores do espectro, que podem ser complementares ou opostas entre si. Ambos os artistas conseguiram pela primeira vez que o processo pictórico deixasse de ser um mero instrumento da criação artística para tornar-se seu próprio objeto.
As pesquisas de Cézanne abriram caminho para o cubismo, movimento que reduziu a realidade a esquemas geométricos essenciais, ignorando as leis da perspectiva. A cor perdeu a antiga função descritiva para ganhar um papel autônomo. Essas abordagens supõem um avançado grau de abstração, que se percebe nitidamente na obra de Picasso e Braque.
Em 1912 inaugurou-se em Paris a exposição La Section d'Or, organizada por pintores cubistas. Inspirada nos princípios da harmonia de Seurat, a mostra significou um cisma no movimento. Dois dos dissidentes deram início ao abstracionismo geométrico: Frantisek Kupka, que no mesmo ano assinou "Planos verticais", nos quais formas geométricas e massas de cor eram ordenadas de acordo com as dimensões e tonalidades, e Robert Delaunay, que pintou o "Disco simultâneo", círculo dividido em outros círculos concêntricos, subdivididos em quatro segmentos pintados com diferentes cores, o que produz efeito de rotação.
O construtivista Vladimir Tatlin empregou também formas abstratas relacionadas à indústria e à tecnologia, organizadas de maneira linear e geométrica. Sua obra representou o ingresso da escultura no abstracionismo e o embrião da arte cinética. Sob influência de Tatlin, Kazimir Malevitch voltou-se para a "experiência da pura não-objetualidade", com a qual tentava eliminar as reminiscências expressivas do construtivismo e chegar à integração da arte com o desenho industrial. Seu ideário artístico, denominado suprematismo, foi expresso num manifesto de 1915.
Movimento De Stijl. Os holandeses Theo van Doesburg, Piet Mondrian e Bart van der Leck, contemporâneos da primeira guerra mundial, promoveram uma depuração estética do abstracionismo geométrico. Mondrian, criador do neoplasticismo, usou exclusivamente linhas horizontais e verticais, cores primárias (vermelho, amarelo e azul) e não-cores (preto, branco e cinza). Van Doesburg e Van der Leck optaram por grandes superfícies geométricas cobertas pelas cores primárias. As duas tendências coincidem no princípio enunciado por Mondrian: "A ordenação autônoma da arte, que conduza à percepção inequívoca do regular, do construtivo e do funcional."
Das concepções dos três artistas, aos quais se reuniram outros, nasceu em 1917 a revista De Stijl, porta-voz do movimento de mesmo nome. O grupo propôs uma nova abordagem artística da realidade, que levasse em conta a universalidade e a integração de todas as artes. A arquitetura da época, fortemente influenciada pelo movimento, adotou em larga escala os princípios de Mondrian.
O manifesto publicado pelo movimento De Stijl, no final da primeira guerra mundial, resume e integra as pesquisas da nova arte, expressando uma consciência social emergente determinada a estabelecer leis estéticas universais. Toda a Europa aderiu ao objetivo e os movimentos paralelos se multiplicaram. Dois irmãos, os russos Antoine Pevsner e Naum Gabo, publicaram em 1920 o Manifesto realista, que propunha uma nova escultura baseada nos dois princípios fundamentais da realidade: o espaço e o tempo. Pevsner e Gabo, participantes do movimento construtivista, criaram "esculturas espaciais" de extrema leveza que pretendiam materializar o processo do nascimento das formas.
O russo El Lissitzki, o suíço Le Corbusier, o francês Fernand Léger e o húngaro Lázló Moholy-Nagy voltaram-se para a busca de uma linguagem que combinasse o rigor geométrico com uma estética da máquina. Esse estilo sedimentou a escola Bauhaus, de Weimar, na Alemanha, fundada por Walter Gropius. A ela chegaram pintores procedentes do expressionismo, como Kandinski, que optara pelo abstracionismo informal, e Paul Klee, vindo do surrealismo abstrato. Com a adesão de artistas ligados ao construtivismo, como Moholy-Nagy, a escola tomou uma orientação funcionalista e dirigiu-se para o desenho industrial. O encontro das várias tendências estimulou as pesquisas geométricas e cromáticas de Kandinski e Josef Albers, a arquitetura de Walter Gropius e o elementarismo de Doesburg.
Nos últimos anos da década de 1920, a adesão de alguns mestres do cubismo ao abstracionismo geométrico deslocou para Paris o centro da arte abstrata. Ali surgiram dois grupos, o Cercle et Carré e o Abstraction-Création, que aglutinaram artistas de várias nacionalidades. Deles participaram Doesburg, Gabo, Pevsner, Mondrian, Auguste Herbin, Jean Arp, Kupka e Joaquín Torres García, este o introdutor do abstracionismo geométrico na América Latina. A principal contribuição do Abstraction-Création foram as pesquisas ópticas, especialmente as que tiveram por objeto os fenômenos vibratórios das composições geométricas de volumes cromáticos desenvolvidos mais tarde pela op art.
Abstracionismo geométrico depois da segunda guerra mundial. Os movimentos que deram continuidade ao abstracionismo geométrico se multiplicaram depois da segunda guerra mundial, embora divergissem, em alguns casos, de seus princípios originais. A op art (optical art, ou arte óptica), que tem em Victor Vasarely e no venezuelano Jesús Soto dois de seus representantes, tentou produzir uma ilusão de movimento com o emprego de formas geométricas que alternam luz e cor. Seu equivalente na escultura foi a arte cinética de Alexander Calder, do grupo Zero, de Jean Tinguely, do grupo Nul, de Nicolas Schöffer e outros. A ars accurata de Richard Paul Lohse, construtivismo matematicamente puro baseado em estruturas cibernéticas, desembocou na arte por computador (computer art), que estendeu ao terreno artístico a moderna teoria da informação.
O abstracionismo levado às últimas conseqüências trouxe como reação a linguagem direta e hiper-realista da arte pop, que por sua vez provocou o aparecimento do minimalismo (minimal art) na década de 1960. Como num retorno ao cubismo, essa nova tendência abstrata, representada por Sol LeWitt e Robert Morris, reduziu a forma aos determinantes essenciais do volume, despojando-o de enfeites e enfatizando sua relação com o espaço circundante.
Abstracionismo informal. Diversamente do que ocorreu com o abstracionismo geométrico, surgido de uma proposta puramente pictórica, o ponto de partida da abstração informal ou lírica incluiu pressupostos alheios à pintura, cuja origem se encontra na reação subjetiva do expressionismo alemão ao movimento impressionista. Kandinski, integrado nesse movimento, foi o criador da "Primeira aquarela abstrata", de 1910, primeira obra literalmente abstrata da história da arte. Kandinski antecipou as pesquisas geométricas de Kupka, Delaunay e Malevitch ao expressar um conteúdo simbólico por meio da forma e da cor livres de atribuições representativas. Sua obra, no entanto, conservou resquícios realistas até 1921.
O dadaísmo, espécie de rebelião cultural surgida em Zurique, em 1916, em pouco tempo ganhou adeptos por toda a Europa. Dele participaram pintores como Max Ernst, que passaria depois ao surrealismo, e Marcel Duchamp. Terminada a segunda guerra mundial, a mudança de Ernst, Arshile Gorki e outros pintores próximos do surrealismo para os Estados Unidos intensificou o contato entre a Europa e o Novo Mundo. Nos dois continentes vingou a idéia de uma pintura abstrata de caráter emocional, que teve seu apogeu entre 1945 e 1965. O movimento, conhecido como expressionismo abstrato, reuniu todas as tendências americanas e européias. Suas raízes se encontravam tanto nas teorias de Kandinski quanto no surrealismo automático de André Masson e Roberto Matta. Ao lado da linha contemplativa de Mark Rothko, cujas grandes massas de cor pretendem provocar no observador respostas de natureza espiritual, desenvolveu-se nos Estados Unidos a pintura gestual (action painting), muito mais agressiva, na qual o trabalho sobre a tela se faz com absoluta dissociação de qualquer objetivo, como uma explosão emocional do artista. Um dos maiores representantes dessa tendência foi Jackson Pollock. Suas telas se assemelham a campos de batalha, nos quais a pintura se torna parte da biografia do autor. Ele próprio definiu seu projeto: "Quero expressar meus sentimentos e não ilustrá-los." Essa aspiração culminou com a técnica do drip, ou seja, a aplicação direta das tintas sobre a tela estendida no chão, sem intervenção dos instrumentos tradicionalmente empregados em pintura (pincéis, espátulas etc.). Também se destacaram na linha da pintura gestual Franz Kline e Willem de Kooning.
O tachismo (de tache, mancha), também chamado informalismo, foi a expressão européia da pintura gestual americana. Seus principais representantes são Wolfgang Wols, Georges Mathieu e Antonio Saura.
Com a americana Helen Frankenthaler, a pintura gestual atravessou uma fase lírica de transição que, sem abandonar as formas caligráficas próprias da pintura do pós-guerra, introduziu uma técnica semelhante ao batik com notável efeito cromático. Surgiu assim o novo abstracionismo, ou abstracionismo da segunda geração (post-painterly abstraction), representado por pintores como Morris Louis e Barnett Newman. Ao mesmo tempo brotavam na Europa novas concepções abstratas que passavam pelo tratamento do material e pela função social do artista. Alberto Boon e Antoni Tapiès foram os pintores que se destacaram nesse movimento, representado na escultura por Eduardo Chillida e Henry Moore, cujas formas orgânicas apelam para a realidade a partir de um ponto de vista abstrato.
Abstracionismo no Brasil. No fim da década de 1940 formaram-se em São Paulo e no Rio de Janeiro os primeiros grupos de abstracionistas brasileiros. O crítico Mário Pedrosa defendeu em 1949 a tese denominada Da natureza afetiva da obra de arte, influenciando artistas como Ivan Serpa, Almir Mavignier e Abraão Palatnik. Estes foram os fundadores do primeiro grupo abstracionista carioca. No mesmo ano, Valdemar Cordeiro fundou em São Paulo o Art Club. Com ele, Luís Sacilotto e Lothar Charoux integraram o núcleo pioneiro do abstracionismo na capital paulista. Antônio Bandeira, em Paris, participou da inauguração do grupo Banbryols.
Data de 1952 o manifesto do grupo paulista Ruptura, que marcou posição contra todas as principais tendências da arte no país. Os paulistas se proclamavam representantes locais do concretismo e intérpretes dos princípios racionalistas que regiam essa corrente. A primeira mostra do grupo carioca Frente, em 1954, deixou clara sua independência em relação aos princípios teóricos observados estritamente pelo núcleo de São Paulo.
As diferenças entre as duas vertentes se acirraram até que, em 1959, artistas do Rio, aos quais se uniram poetas como Ronaldo Jardim e Ferreira Gullar, romperam com o movimento, fundaram o neoconcretismo e aboliram de sua concepção estética a hierarquia entre forma, cor e fundo, característica da arte concreta paulista.
Os dois movimentos coincidiam, no entanto, na oposição ao abstracionismo informal. A polêmica só não foi mais veemente porque os abstracionistas informais brasileiros trabalhavam individualmente, não formaram grupos nem produziram documentos sobre suas idéias. Entendiam que a sistematização do pensamento artístico contraria a essência da liberdade de ação que acreditavam fundamental para seu trabalho.
Apesar de algumas afinidades perceptíveis com o movimento internacional, a vertente informal brasileira não se integra nas tentativas de classificação ensaiadas pela crítica. Uma exceção é a obra de Antônio Bandeira, que guarda alguma semelhança com os trabalhos de Wolfgang Wols e Camille Bryen. Na pintura de Manabu Mabe são encontrados elementos caligráficos que caracterizam a obra de abstracionistas informais europeus, como Georges Mathieu.
Avaliação. O abstracionismo ampliou quase ao infinito os meios expressivos das artes plásticas. Se num primeiro momento o radicalismo fez supor um rápido esgotamento de suas possibilidades, a maturidade do movimento permitiu um diálogo mutuamente enriquecedor com as tendências figurativas.